segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O ABORTO E O OPORTUNISMO ELEITORAL

Recebi hoje pela manhã, através do meu e-mail, notícia veiculada no GLOBO, sobre um bebê nascido de um embrião congelado a quase 20 anos - 19 anos e sete meses, mais especificamente.

A notícia chamou-me a atenção pela quantidade - e qualidade - de questionamentos que é capaz de suscitar nas mais variadas religiões e filosofias teológicas, entre elas o Espiritismo, sobre temas como, por exemplo, o aborto, tão explorado nas últimas semanas.

Peço licença aos leitores do blog para realizar uma reflexão teológica sobre essa notícia. Quero dialogar principalmente com os espíritas, devido ao absurdo envolvimento de questões religiosas na disputa eleitoral desse ano - eleição de um Estado laico, diga-se de passagem. A pauta do aborto tem sido potencializada ao extremo e de uma forma perigosamente moralista, praticamente pregando uma caça aos "cidadãos do mal". Lamentavelmente essa eleição cheira às masmorras e fogueiras da Europa da Idade Média. Quatro anos depois de escrever "O Espiritismo e a legalização do aborto", volto a abordar esse tema de forma teológica.

Sou totalmente a favor de que as religiões e filosofias teológicas envolvam-se nas questões que dizem respeito à organização e desenvolvimento da humanidade, mas jamais dessa forma pragmática, eleitoral, jamais como um pilar de disputa entre as diferentes concepções sobre o homem e nossa estrutura social.

Se é para debater, que seja para contribuir, construir, não para derrotar este ou aquele, não para tomar para si a posse da verdade, como se nossas convicções individuais estivessem acima das sínteses sociais. É por essa razão que estou me dirigindo com esse texto aos que, como eu, são espíritas e não aceitam a indexação e distorção de questões tão importantes à interesses menores, como uma disputa eleitoral.

Dessa forma, começo minha reflexão com um "lugar comum" nas religiões como um todo que dizem que a vida existe desde a concepção. Na verdade, essa premissa, aceita como dogma inclusive por espíritas é questionável, principalmente para os reencarnacionistas, afinal, para nós a vida existe ANTES da concepção.

Afinal, para um espírito reencarnar, ele precisa existir, precisa estar vivo. O que muitos espíritas defendem é que, desde a concepção, ou seja, desde o momento em que o espermatozóide fecunda o óvulo, um espírito passa a estar conectado com o embrião, passando por um longo processo ao longo do desenvolvimento do feto até o nascimento do bebê. 

Isso é possível e, na realidade, é bem provável que o processo seja esse mesmo. Mas nada aponta na direção de que o processo seja SEMPRE este.

É nesse sentido que iniciam os questionamentos que esse bebê nascido de um embrião congelado a quase 20 anos. O que aconteceu com o espírito desse bebê? Permaneceu em estado de "suspenção" durante esses 20 anos? Não creio... Considerando que a "vida real" seja a dimensão que chamamos de "espiritual", e que a regra é buscar o progresso constante (o que não é diferente daqui), seria como se esse espírito fosse subtraído em praticamente uma encarnação inteira. Afinal, 20 anos é praticamente o processo todo até a idade adulta. 

Significaria dizer que, comparativamente com espíritos afins, esses "suspensos" teriam ficado para trás, teriam atrasado seu desenvolvimento em 20 anos. Isso se considerarmos as primeiras experiências de congelamento que remontam esse período. Mas... Quanto tempo será possível? 30 anos, 40, 50, 100 anos? Será que é um processo sem prazo de validade, ou seja, poderemos ver nascer daqui a mil anos embriões congelados hoje?

Com o nascimento de bebês a partir de embriões congelados por 20 anos sendo uma realidade, e fazendo valer as velhas premissas sobre a concepção da vida orgânica, o congelamento de embriões assume um papel muito mais grave do que a prática do aborto.

Afinal de contas, quantos milhares de embriões congelados existem no mundo? Quantos mais estão sendo congelados enquanto escrevo este texto? Quantos milhões serão congelados ao longo dessa e da próxima década? Com cada embrião congelado suspendendo um espírito por anos e até décadas, ceifando o tempo de uma encarnação inteira desses espíritos, atrasando seu progresso em relação à outros espíritos até então semelhantes, a quem poderíamos comparar os cientistas responsáveis? 

Certamente, sob o ponto de vista das "dívidas espirituais", todos esses cientistas estariam com maiores problemas do que Mussolini, Hitler e outros tantos algozes da humanidade. Sob o ponto de vista da evolução espiritual, cometer um aborto seria muito, mas muito mais "leve" do que o cometer um aborto. 

Afirma-se que o aborto interrompe um processo, impede um espírito de encarnar e progredir espiritualmente. Entretanto, essa interrupção não o suspende por 20, 30 anos, como acontece com o congelamento de embriões. Nesse sentido, com esse raciocínio, muito melhor para um espírito ver o embrião ser abortado do que congelado.

Felizmente não é assim que as coisas funcionam. Provavelmente existam, com afirmei antes, inícios de vida orgânica na concepção, assim como devem haver inícios posteriores. No caso do congelamento de embriões, é razoável concluir que só existe o ligamento espírito-embrião após o DESCONGELAMENTO, ou seja, após a inseminação. É razoável concluir que não seja destinado espírito algum à um embrião que, de antemão, sabe-se estar sendo concebido para ir para a geladeira.

Também é razoável concluir que, de forma geral, o ligamento entre um espírito e a massa orgânica do embrião dá-se em algum momento entre a concepção e o estágio avançado da gravidez. Ou seja, não necessariamente no momento exato da concepção, como defendem alguns.

Somente essa revisão conceitual permite adequar-se de forma harmônica ao congelamento de embriões. Na carona dessa revisão é preciso fazer avançar nossa idéia sobre aborto. Será que o aborto é algo realmente tão terrível assim?

O próprio Espiritismo, em suas obras básicas, afirma que em caso de risco de vida para a mãe, deve-se realizar o aborto para preservar a encarnação que já está em andamento. Será que realizá-lo nesse caso acarreta tantos malefícios assim para o processo do espírito cujo embrião não evoluiu? Aliás, será que já havia um espírito ligado a esse embrião?

Indo mais além, o próprio Espiritismo afirma que ninguém passa por situações que não necessita passar. Será que, sabendo de antemão que a mulher poderá desejar realizar um aborto, o espírito destinado a ligar-se ao embrião não será determinado justamente por necessitar passar por essa experiência de frustração?

Desmistificando um pouco a abordagem e questionando sob um outro prisma, será que alguém tem o direito de intervir no processo evolutivo de cada um? Será que uma linha de pensamento humano pode arrogar-se o direito de ultrapassar os limites de determinar os caminhos de sua própria vida íntima para querer determinar os caminhos da vida de todos, baseado em suas convicções individuais sobre a vida, o mundo e o universo?

Minhas convicções não valem menos do que a concepção de ninguém, mas também não valem mais. Evidentemente que no meu foro íntimo as minhas convicções filosóficas tem um valor incomparável. Entretanto, sob a ótica do Estado, minhas convicções não podem valer mais nem menos do que as convicções de ninguém. Pelo contrário, o Estado precisa resguardar meu direito íntimo de viver de acordo com as minhas convicções, sem agredir ou ser agredido por convicções alheias. 

A condenação do aborto, por exemplo, é uma concepção profundamente enraizada na religiosidade. Qual a razão para um ateu, por exemplo, ser submetido à essa violência, ou seja, ser submetido à regras estabelecidas em códigos filosóficos que ele não reconhece? Qual a razão para um muçulmano de Porto Alegre, por exemplo, ser submetido a ser representado por uma Câmara de Vereadores que carrega uma cruz nas paredes do Plenário, para lembrar aos parlamentares o caminho a ser seguido por suas decisões?

O Estado brasileiro tem a obrigação de abrigar as diferentes convicções em sua legislação, dando espaço a todos para viverem da forma como bem entenderem. Ninguém que é contra o aborto é obrigado a fazer aborto por ele ser legal, portanto, ninguém que deseja realizar o procedimento deve ser impedido por motivos religiosos de terceiros.

Isso sem contar na questão da saúde pública, que ditou  o tom do artigo que escrevi a quatro anos atrás e que permanece com a problemática absolutamente atual.

Estou farto de ver essa questão ser usada irresponsavelmente pelos fundamentalistas de todas as religiões que repetem e criam mantras completamente desprovidos de reflexão sobre qualquer coisa, a não ser sobre a melhor forma de ampliar e fortalecer as cercas de seus rebanhos. Liberdade de pensamento? Não trabalhamos.

7 comentários:

Elias Barboza disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Leandro Silva disse...

De fato, é lamentável a forma como vem se desdobrando a questão do aborto nas campanhas eleitorais. É triste se deparar com candidatos que usam a questão para ganhar votos e sequer conseguem determinar algo concreto em relação à saúde pública.

Também acho que os "pregadores" das religiões não promovem a reflexão. Na verdade eles pregam a sua verdade como absoluta.
O texto está simplesmente muito bom. Parabéns!

13 de outubro de 2010 às 01:06
Renamet disse...

Eu não concordo nem um pouco com o seu argumento, ele está pouco convincente. Tenta outro.

Fica com Deus.
Renato/Vitória -Es.

13 de outubro de 2010 às 01:11
norma disse...

Tema muito controverso, mas eu como espírita, não creio que o espírito fique “suspenso” até o descongelamento. Nem tampouco fique ali esperando a “ligação” e perdendo tempo em relação aos outros espíritos! A começar temos que entender o que é “tempo” diante da visão espírita. Ele existe? Temos um conceito muito errado de tempo!
Disputa entre espíritos? Quem vai reencarnar primeiro? Isto me parece coisa de “Brasileiros” será que no plano espiritual também tem o jeitinho Brasileiro! Que coisa mais absurda! Alan Kardec deve estar muito PUTO com isso! rsrs
Também estou farta de ver esta questão sendo muito mal utilizada neste momento político, abraço!

13 de outubro de 2010 às 01:23
Anônimo disse...

Caro Mirgon,
Voce realmente é espírita?
Bem, lá do Livro dos Espíritos temos o seguinte:

344. Em que momento a alma se une ao corpo?
“A união começa na concepção, mas só é completa por ocasião do nascimento. Desde o instante da concepção, o Espírito designado para habitar certo corpo a este se liga por um laço fluídico, que cada vez mais se vai apertando até ao instante em que a criança vê a luz. O grito, que o recém-nascido solta, anuncia que ela se conta no número dos vivos e dos servos de Deus.”

24 de outubro de 2010 às 21:24
Luiz Vaz disse...

Creio que seria necessário saber como a palavra "concepção" era usada na época de Kardec. Hoje vemos a concepção como o momento em que os materiais genéticos se misturam (quando o espermatozóide entra no óvulo), mas talvez na época de Kardec essa palavra tivesse um sentido mais abrangente. A exigência de o espírito se ligar no instante momento da concepção, como entendida hoje, até valeria se isto fosse crucial na hora da mistura dos materiais genéticos, fora isso eu acho que os espíritos não teriam dificuldade de se ligar a embriões em estágios mais avançados. A natureza é capaz de tocar à frente o processo de gestação sem a necessidade de um espírito reencarnante (ver questão 356 do OLE), então talvez ela possa esperá-lo mais um pouco.

30 de outubro de 2010 às 22:45
A Mãe do Autista disse...

Eu acho que a partir do momento que o Homem for tbém penalizado pelo aborto que a mulher fez, esse ato tende a diminuir.
É muito fácil acusar a mulher do ato, muitas vezes em situação de desespero, geralmente por abandono do pai.
Trabalhei grande parte da minha vida em comunidades, ouvi muitos relatos reais; "religiões que proíbem uso de anticontraceptivos" e de milhares de crianças rolando pela rua...e por ai vai!
Responsabilidade mútua!

13 de novembro de 2010 às 21:53

Postar um comentário