A pesquisa divide o mundo em 4 grandes blocos: Democracias Plenas (1º ao 26º), Democracias Falhas (27º ao 79º), Regimes Híbridos (80º ao 112º) e Regimes Autoritários (113º ao 167º). Vamos encontrar o Brasil na 47ª colocação geral, já caindo no grupo das Democracias Falhas.
Apesar de a Zero Hora não disponibilizar a integra do documento, composto de 46 páginas, consegui acesso à pesquisa do EIU, que traz alguns dados laterais bem interessantes - e que, é claro, foram sonegados ao leitor do jornal. A primeira informação apresentada de forma bastante nebulosa e confusa é o que torna a democracia brasileira uma democracia falha. A matéria, ao explicar as nuances para que se defina uma democracia, se resume à uma declaração do professor da PUC/RS Hermílio dos Santos, que afirma que "o egito tem eleições. A Venezuela tem eleições. Nem por isso são democrático".
Lamentavelmente, a matéria induz nas entrelinhas o leitor a responsabilizar os governos e os Estados como os elementos definidores do que sejam democracias, ditaduras e outros tipos de regimes. Eles realmente são, mas apenas de forma parcial.
É nesse ponto que a ideologização midiática surge mais uma vez em sua forma mais manipuladora. No caso do Brasil, o que coloca o Brasil na 47ª colocação e com status de uma democracia falha não é nem o governo, nem o modelo do Estado, mas nossas cultura e participação política (volto a esse ponto mais a frente)! Isso é citado na matéria apenas de forma tangencial, quase que a contragosto, para poder apresentar os números brasileiros da pesquisa.
Com acesso ao quadro completo de notas da pesquisa, novos e interessantes dados descortinam-se. A nota final é composta por cinco notas intermediárias: 1 - Processo Eleitoral e Pluralismo; 2 - Funcionamento do Governo; 3 - Participação Política; 4 - Cultura Política e; 5) Liberdades Civis.
A primeira delas é que, de perto, as "democracias plenas" não são tão plenas assim. Dos 26 países: 1) nenhum obteve nota acima de 9,4 em todos os quesitos; 2) apenas a Noruega obteve todas as notas acima de 9; 3) apenas 6 países (Noruega, Islândia, Dinamarca, Suécia, Nova Zelândia e Holanda) obtiveram todas as notas acima de 8 e; 4) 11 possuem pelo menos uma nota abaixo de 7, sendo 4 abaixo de 6 e 1 abaixo de 5!
Olhando de perto, a maior parte dos países chamados "democracias plenas" confunde-se com os países de "democracias falhas" e vice-versa. É com esse olhar de perto que vemos ruir alguns mitos.
Muitos defendem que o Brasil deveria espelhar-se nos Estados Unidos para organizar sua política. Talvez a população brasileira tenha algo a aprender com a população dos Estados Unidos em matéria engajamento, participação e compreensão da importância da política. Mas fica por aí.
O jogo vira completamente quando nos debruçamos justamente naqueles pontos em que os Estados Unidos são tidos por alguns analistas como um grande exemplo: organização do Estado, processo eleitoral e liberdades civis. A despeito de todos os analistas que insistem em usar a grande água do norte como base para realizar mudanças políticas no Brasil, estamos muito a frente deles nesses quesitos. Tivéssemos maiores cultura política e participação política, seriamos considerados um país de democracia plena, talvez bem a frente da modesta 17ª posição ocupada pelo país de Obama.
Se avaliarmos apenas os dados de Organização do Estado, Processo Eleitoral e Liberdades Civis, o Brasil alcança uma nota média de 8,73 contra 8,52 dos Estados Unidos! Ou seja: Adentra o rol das "democracias plenas" e ultrapassa os Estados Unidos como exemplo de democracia!
Mas as "surpresas da organização democrática" brasileira não ficam por aqui. Permanecendo somente com esses três dados, o Brasil estaria mesmo entre as 15 "potências democráticas", Perdendo por muito pouco - para a mesma média de três dados - para Áustria e Alemanha, respectivamente 13º e 14º colocados no ranking.
Entretanto, isoladamente, o mais agressivo dos dados, na minha opinião, é o que fala sobre as liberdades civis. Segundo a notação, os Estados Unidos possui nota 8,53 em liberdades civis, quando o Brasil atinge a já excelente marca de 9,12! É assombroso - em tempos de imprensa que constantemente faz-se de vítima, afirmando-se censurada - que na realidade nossa democracia conceda mais liberdades civis do que os Estados Unidos! Assombroso, evidentemente, para os adoradores do "American Way of Life", porque - faça-se justiça! - aqueles que não iludem-se com o tão maravilhoso quanto mortal canto da sereia, sempre souberam o que esses dados somente atestam!
Mas... Se o conjunto de números desfaz o mito da democracia estadunidense e sua pseudo-superioridade sobre a democracia brasileira, o fato é que essa pesquisa também diz muito sobre nós mesmos.
Temos que admitir - para o nosso próprio bem! - que a pedra dentro do nosso sapato não está na estrutura do Estado, nos governos, ou em qualquer outra espécie de instituição palpável. A boa notícia é que, parece, estamos no caminho certo em nossa política. A má notícia é que os problemas concentram-se em um terreno espinhoso.
Precisamos fazer avançar nossa cultura política e também o engajamento na construção de políticas, de leis e na formulação e execução de soluções para nossos problemas. O Estado é, por excelência, um "resolvedor de problemas" e um "administrador de áreas comuns". A base da necessidade do Estado está justamente na existência de problemas, necessidades e "áreas comuns". Essa é toda a origem da organização social estatal.
Dentre todas as formas de organização estatal que o mundo já viu, de todas é a democracia quem mais se aproxima da concepção que temos de um Estado ideal. Entretanto, o Brasil é jovem demais - somente 500 anos - para que a história seja base de lapidação do presente e janela de visualização do futuro. Tanto é que nossos modelos de organização social são TODOS importados. Falamos em Adam Smith, falamos em Marx, mas ainda não temos uma organização social baseada em conceitos nacionais. Isso, evidentemente, torna muito mais distante da população uma idéia de comprometimento com o que se está fazendo.
Como exemplo, podemos citar nosso Senado, cuja primeira legislatura tomou posse em 1826, inspirado na "Câmara dos Lordes" bretã, criada em 1707, resultado da fusão dos parlamentos dos países formadores da Grã-Bretanha, entre eles a Inglaterra, cuja extinta Câmara dos Lordes inglesa, extinta na fusão, fora instalada em 1241. Entretanto, as experiências de formação parlamentar na Inglaterra são registradas desde 1066, com Guilherme da Normandia.
Enquanto o PCdoB é o partido em atividade mais antigo do Brasil com 88 anos, na Noruega - país mais democrático do mundo - o Partido Trabalhista Norueguês possui 124 anos e muito vigor, com atualmente 64 das 169 cadeiras do parlamento.
A história política do Brasil inicia-se com a chegada dos portugueses em 1500, enquanto boa parte os países com tradição e engajamento político de sua população remonta dois, três mil anos. O elemento da juventude tenra de nosso país tem influência direta na nossa identificação com a questão nacional. Boa parte do país ainda respira os núcleos de imigração. Somos educados aprendendo que somos alemães, italianos, portugueses... Nossos nomes nos denunciam! A arquitetura, culinária e cultura de boa parte das nossas cidades de porte médio e pequeno ainda são "tipicamente" desta ou daquela cultura. Só não existem cidades tipicamente africanas porque estes estavam nos troncos e nas senzalas - mas sua culinária, língua e costumes ganharam terreno em todo o território nacional. O que não existe ainda é a brasileirização de nossa população - mesmo quem já estava aqui, nossos indígenas, são apenas parte desse quebra-cabeça.
Na Alemanha existe a cultura alemã, na Inglaterra a cultura inglesa, na Noruega a cultura norueguesa... Estes países de identidade tão antiga já foram jovens, já foram um emaranhado de grupos menores, imigrantes, povoados independentes. E no Brasil? Por conta de nossa juventude, parte de nossa tarefa é a diluição de todo esse emaranhado cultural do Brasil numa fusão formadora de nossa identidade única, indivisível, nacional - em outras palavras, construirmos verdadeiramente a pátria brasileira, ainda inexistente.
É preciso que nós todos compreendamos, além dessa justificativa histórica, a importância da organização estatal. Existe uma parcela significativa da população que, por não utilizar diretamente os serviços do Estado, pensa não sofre influências da política. Ledo engano - e sobre isso sequer preciso discorrer uma palavra, basta que se leia "O Analfabeto Político", do dramaturgo alemão Bertold Brecht.
Para além da compreensão da importância do Estado - que por si só é algo hercúleo - é preciso fazer com que as pessoas compreendam as relações de poder que existem no Estado - e onde situam-se nisso tudo. Precisamos entender que a democracia é algo muito mais complexo, em termos de poder, do que simplesmente ir as urnas a cada 2 anos como fazemos. A democracia é um exercício cotidiano de cidadania e participação. Não apenas fiscalizar se o seu representante no legislativo está cumprindo suas funções, mas tomar parte na formulação mesmo do mandato, ajudando a formatar a política que o representante irá defender. Afinal, se ele é representante, deve representar os anseios de seus representados.
Infelizmente nossos pleitos tem eleito tutores e não representantes. Votamos em alguém que decida o que é melhor para nós e nem tomamos conhecimento dos debates, das disputas, das construções - ou desconstruções, muitas vezes - em andamento na sociedade. Isso é entregar a própria tutela nas urnas! A democracia não é um sistema político de tutela, mas de representação. Sendo de representação, todos mantém certas responsabilidades que não deveriam ser abdicadas - mesmo que hajam representantes constitucionalmente eleitos.
Felizmente, parte de nossa população aproveita cada oportunidade, cada espaço aberto para participação para cumprir seu inalienável mandato vitalício de senhor e representante de suas próprias idéias e destino. Nosso desafio é tornar esse comportamento universal em nossa população. Quando isso acontecer, teremos de fato construído uma democracia plena - talvez ainda mais avançada do que as "não tão plenas" democracias do velho mundo.
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